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O Criador e a Criatura

Por: João Melo Farias

João Melo Farias Poeta e indigenista.

Memórias Indigenistas: O rio Içana e as missões religiosas.

Ana Tapajós (Foto: Reprodução)

Tive a felicidade de trabalhar na cidade de São Gabriel da Cachoeira, região denominada de Cabeça de Cachorro ou Alto Rio Negro em duas oportunidades: 86/88 como técnico/Administrador; e em 90/92, quando ocupei o cargo de Direção de Administrador Regional da Unidade da Funai de São Gabriel da Cachoeira.

Naquela época via com certo desconforto a presença das missões evangélicas, patrocinadas pelo SIL/Instituto Linguístico de Verão, dentro do rio do povo Baniwa: o Içana, rio de águas da cor de chá, afluente da margem direita do rio Negro. E o meu desconforto se dava em função de minha formação religiosa católica no Seminário João XXIII na cidade de Parintins, onde nasci. Com o tempo, consegui neutralizar minha tendência religiosa e passei a melhor interagir com os içaneiros de orientação evangélica e os seus missionários.

Lembro-me do Pastor James Curtis que era o “apoiador” da missão evangélica na cidade de São Gabriel da Cachoeira. Com ele aprendi, posto que ele mesmo se propôs a me ajudar a “entender” os índios do Içana. Para mim ficou claro que ele me aceitou como parceiro indigenista, enquanto eu buscava um professor que fosse falante da Língua Geral e entendesse um bocado da cultura e da língua Baniwa.

Edgar Rodrigues (Foto: Reprodução)

Por segundo, conheci o Pr. Walteir, que trabalhava com os Maku Drarup, que residem até hoje em frente da cidade de São Gabriel da Cachoeira. Essas duas figuras humanas foram muito importantes para minha formação indigenista, pois eles me mostravam coisas e espaços que eu, como funcionário público e ainda muito empolgado, não via.

Com o Pr. James aprendi a dizer não para os Içaneiros, formulando frases com a negativa, para que os mesmos pudessem responder sim como concordância.

O rio Içana é dividido geograficamente entre alto e baixo. O baixo é da boca até a aldeia Nazaré, onde está instalada a Missão católica de Assunção do Içana. Daí para cima, é o alto Içana, tendo a Missão Tunui Cachoeira instalada no alto da cachoeira do mesmo nome.
Essa missão nas minhas andanças de trabalho, via que o mister religioso por partes dos missionários lá residentes era quase zero. Preocupavam-se com os afazeres diários, a segurança da casa e de suas famílias. Ao meu modo de olhar, de ex seminarista recém adentrado no serviço público nem pareciam missionários.
Mas como os meus afazeres de trabalho eram enormes, optei por não perder tempo com essas divagações. Valia-me dos conhecimentos linguísticos e culturais dos missionários, em especial do Pr. James para prestar um serviço indigenista de qualidade para a população indígena do rio Içana, quer fosse na cidade ou no alto rio Içana. Nesse tocante o Pr. James me ajudou muito a resolver as demandas de trabalho junto aos içaneiros.

Então, o baixo rio era “trabalhado” pela missão católica capitaneada pelo Pé. Afonso Casanovas e o alto, pela missão evangélica. No alto, creio que, a exemplo das missões evangélicas situadas entre os Wai Wai e Hixkaryana dos territórios de Nhamundá e Oriximiná, no estado do Pará, os missionários já trabalhavam o evangelismo autóctone, levando os indígenas para os Estados Unidos ou para Mitu, na Colômbia, onde recebiam um curso supletivo de filosofia e teologia em dois anos, no máximo, e quando voltavam eram consagrados pastores do seu povo, pregando na sua própria língua. Isso foi muito significativo para que o Evangelismo galgasse a hegemonia que tem hoje (2024) nesses territórios indígenas.

A diferença se dava no modo de viver e ver a vida. Os Içaneiros chegavam a São Gabriel da Cachoeira em suas canoas batizadas de “bongo”, buscavam o pastor James que os conduzia no seu carro, ajudava-os a fazer suas negociações, dava-lhes carinhosa atenção e por fim, buscar um abrigo para pernoitar com suas famílias, que era um barracão coberto com telha de barro, porém totalmente aberto, de propriedade do pai do ex-prefeito Juscelino Otero, localizado na parte de cima da cidade, na beira do rio. Quanto chovia molhava tudo. No período em que José Ribamar Caldas foi Prefeito, indigenista licenciado da Funai, mandou fazer uma boa reforma nesse pavilhão de forma a melhorar as suas condições de moradia.

O evangelismo incutiu nos Içaneiros a subserviência e o conformismo, atribuído a leitura de um Evangelho as avessas. Enquanto os demais indígenas aldeiados exigiam um local na cidade para dormir com banheiro, paredes, fogões e armadores de redes; os içaneiros se conformavam com o barracão aberto na beira do rio, sem armadores, paredes, banheiros e água.

Mas, mesmo assim, via neles uma altivez incomum, talvez por conta da força da cultura Baniwa ainda subjacente ao evangelismo. Vestiam-com modéstia e mesmo descalços, caminhavam com ares de nobreza pelas ruas da cidade. Não bebiam bebidas alcólicas e nem fumavam; e nem buscavam a companhia destes. Via neles também o respeito pelos prédios das igrejas católicas espalhadas pela cidade, seus cultos, séquitos e padres. E acredito que esperavam o mesmo da parte dos católicos.

João Melo Farias (Foto: Reprodução)

Naquele tempo existia um acordo tácito entre os católicos (padres) e os evangélicos (pastores) no rio Içana para que as comunidades indígenas não fossem assediadas por missionários que não fossem de suas denominações religiosas. Ambos se respeitavam e não haviam conflitos. Os içaneiros católicos e evangélicos viviam em paz mesmo professando credos religiosos concorrentes; eram unidos pela língua, pela água do mesmo rio e pela cosmovisão em Yapericuly. (Mito dos povos indígenas Aruak, Jurupari, herói legislador, sincretizado religiosamente com a figura de Jesus Cristo, por defender os fracos e oprimidos).

Em 1990 nasceu a primeira filha do meu relacionamento com dona Marlene Mota Siqueira. Imediatamente registrei-a com o icônico nome Içana Siqueira Farias, em singela homenagem ao povo originário que fez do rio Içana o seu habitat: o Baniwa.


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