WhatsApp Image 2022-08-30 at 08.29.13
O dia dos povos originários

Por: João Melo Farias

João Melo Farias Poeta e indigenista.

O povo da rede virou sardinha?

Dedico estas poucas linhas a maioria de caboclos, que nem eu, que se utiliza das redes de dormir nos barcos regionais que fazem a linha/recreio Parintins/Manaus/Parintins e demais localidades. Escrevo para louvar o sacrifício que fazem ao deixar o conforto de seus lares para enfrentar o translado fluvial para assistir e engrandecer o Festival Folclórico da cidade de Parintins.

No início deste ano, 2024, em viagem de volta de Manaus para Parintins, como usuário contumaz da rede de dormir, ao acordar olhei para o teto do barco e lá estava escrito num intervalo de 40/45 cm uma série de números que, dependendo do tamanho do barco, pode chegar até aos números 700 ou 800.

Perguntei a um marinheiro de borbo que passava ao lado(como quem não sabia):
— O quê significam esses números?
Ele respondeu:
— É a capacidade do barco. Cada número é uma rede.
Voltei a perguntar a ele:
— Você dorme na rede?
E ele, respondeu:
— Sim, sempre. Tem um camarote à nossa disposição lá na popa (traseira do barco), mas é muito jitinho (pequeno) para agasalhar 4 marinheiros, além do que é muito quente e barulhento. É bem pertinho da casa de máquina. Depois que o barco sai, eu ponho minha rede embaixo do braço e procuro um lugar para atar.
— Você dorme bem?
Voltei a perguntar e ele me respondeu:
— Sim, geralmente tenho uma boa noite de sono. Já tô acostumado.

Voltei a insistir.
— Você arma tua rede e consegue dormir nesse espaço que está determinado pela capacidade do barco?
Ele, rindo, disse:
— Deus que me livre e guarde! Armo minha rede nas beiradas, naquela zona que é reservada ao trânsito de pessoas. Na cozinha se estiver desocupada. E se o barco estiver muito lotado armo por cima das cargas lá embaixo, mas não fico sem dormir. O trabalho é muito pesado e dormir é o único jeito de a gente se recuperar.

Após essa conversa dirigi-me ao comando do barco onde fiz praticamente as mesmas perguntas ao Comandante. Ele, muito atencioso, porém sem tirar as mãos da malagueta ou mensageira (timão do comando) e os olhos das águas que corriam contra o barco, foi dizendo:
— Com o pessoal das redes eu não mexo. Sou pago por viagem. A empresa me contrata e a todos aqui por viagem. Ela, a empresa, é muito séria. Eu cumpro apenas o quê ela me pede e me paga. Com o pessoal da rede, eu não mexo.
— Com o quê o senhor mexe?
— Eu cuido da segurança do barco e, naturalmente, dos passageiros; das cargas e suas notas; dos trabalhos dos marinheiros; da alimentação dos passageiros e tripulantes; supervisiono a sala de máquina e a harmonia de tudo durante a viagem. Veja, são muitas tarefas num espaço de tempo tão curto. Fico cansado só de falar. Por esses motivos eu não mexo com o pessoal das redes!

Findo a viagem fui para casa.
Na outra semana fui obrigado a ir à sede da Capitania Fluvial dos Portos para tratativas laborais do meu trabalho e aproveitei a oportunidade para reclamar ao oficial que tratava comigo desse minguado espaço destinado às redes. Ele assim ponderou a minha indagação:
— A Capitania é a responsável pela fiscalização das leis navais. Nós apenas seguimos as regras. Essa parte de espaçamento de redes e capacidade de barcos não é com a gente.
— Qual o papel da Capitania?
— A Capitania é a responsável pela segurança dos barcos. Cuidamos para que os barcos tenham salva-vidas tipo coletes e botes para atender a todos em caso de naufrágio; enfermeiro/a com medicamentos a bordo; marinheiros treinados e habilitados; barco com equipamentos de segurança e comunicação; além de verificar, frizo, verificar a lotação dos barcos. Fiscalizados também as mercadorias para saber se são de procedência legal.

Voltei ao caso das redes.
— E quem diz quantas redes cabe num barco?
— Ah meu amigo, isso não é da nossa orçada. Isso é com a Engenharia Naval. Quantos tanques tem que ter um barco (tanqueamento) para garantir a segurança do barco são eles quem dizem; a capacidade de gente e de carga também. Nós apenas cobramos isso dos barcos.
E ele me perguntou:
— Você já andou num barco da Marinha de Guerra?
E não esperou eu responder.
— Pois eu lhe digo. Os corredores são tão estreitos que duas pessoas do nosso tamanho não passam ao mesmo tempo em sentidos contrários. Um tem que sair para o outro passar. No universo dos barcos tudo é muito diminuto, muito apertado. Por isso tem aquele ditado: “quem não quer passar mal, não saia de casa”. Aqui recriamos esse ditado: “quem não quer aperto, não viaje de barco”. A casa da gente é uma maravilha, se comparado com os barcos.
E finalmente sentenciou:
— O povo das redes que fale por si!

Por ocasião do Festival Folclórico e do Natal as demandas por passagens crescem de tal forma que as redes se amontoam e muita gente diz que os barcos viram latas de sardinhas (humanas).

Quem vai defender o povo que viaja de rede?


Qual sua Opinião?

Confira Também