O rito é representativo enaltecendo a trindade familiar. O artefato seria apenas um vestuário se não encarnasse o significado de um tempo determinado circunscrito numa sociedade marcada por seus fantasmas que personalizam formas de pesadelos a perturbar seus atores que exibem domínio e controle sobre a mulher.
Na realeza aristocrática o fato ganha corpo na moral familiar, como bem denuncia o nosso poeta maior, Carlos Drumond de Andrade, em seu poema “Caso do Vestido”, calçado na submissão da mulher ao macho, registro de uma era. Por outro lado, o cronista Nelson Rodrigues, consegue abstrair as contradições do tempo das transformações sociais com graves impactos na moral comportamental decadente da nobreza embalada por hábitos machistas dos tempos da Casa Grande e dos Baronato da borracha.
O tema é recorrente, mas, hoje avançamos para outros fins, valores e domínios numa perspectiva emancipatória longe das correntes morais que coisificam a mulher em nome da família, da religião e de uma justiça da honra.
Vestido de Noiva é uma fonte a representar um modo de vida, suas relações sociais e formas de poder.
Para compreender essa armadura em si é necessário que estudemos a vida privada, em se tratando da Amazônia, “a nobreza” remete-nos para o “boom” da borracha (a belle époque dos igarapés de Manaus).
A questão decantada é ranço das elites decadentes que viviam da exploração do trabalho dos índios, caboclos e dos milhares de migrantes nordestinos que estavam submetidos ao regime de barracão.
A leitura deste fenômeno é muito importante para se passar a nossa história a limpo, não como prisioneiro do passado, mas, como sujeito protagonista das transformações sociais, em destaque, o empoderamento da mulher, bem como as mudanças estruturantes da família e das relações de produção sob o regime capitalista que tem como plataforma a ZFM assentada no Polo Industrial de Manaus. Sou daqueles que cultiva o debate como luz para lumiar o presente e o futuro numa perspectiva história.
Carlos Drummond de Andrade
CASO DO VESTIDO
Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego?/ Minhas filhas, é o vestido de uma dona que passou./Passou quando, nossa mãe?/ Era nossa conhecida?/ Minhas filhas, boca presa./ Vosso pai evém chegando/ Nossa mãe, esse vestido tanta renda, esse segredo!/ Minhas filhas, escutai palavras de minha boca./
Era uma dona de longe,/ vosso pai enamorou-se./ E ficou tão transtornado,/se perdeu tanto de nós,/ se afastou de toda vida,/se fechou, se devorou.
(…)
Dona, me disse baixinho,/ não te dou vosso marido,/ que não sei onde ele anda./ Mas te dou este vestido,/ última peça de luxo/ que guardei como lembrança/ daquele dia de cobra,/ da maior humilhação.
(…)
Aqui trago minha roupa/ que recorda meu malfeito/ de ofender dona casada/ pisando no seu orgulho.
Recebei esse vestido/ e me dai vosso perdão.
Olhei para a cara dela,/ quede os olhos cintilantes?/ quede graça de sorriso,/ quede colo de camélia?/ quede aquela cinturinha/ delgada como jeitosa?/ quede pezinhos calçados/com sandálias de cetim?
Olhei muito para ela,/ boca não disse palavra.
Peguei o vestido, pus/ nesse prego da parede.
Nelson Rodrigues
VESTIDO DE NOIVA
(Wikipédia)
Vestido de Noiva é uma peça teatral brasileira, de teor psicológico, escrita por Nelson Rodrigues e encenada pela primeira vez em 1943. Em seu cenário, a peça apresenta três planos que se intercalam: o plano da alucinação, o plano da realidade e o plano da memória. A peça conta a história de Alaíde, uma moça que é atropelada por um automóvel e, enquanto é operada no hospital, ela relembra o conflito com a irmã (Lúcia), de quem tomou o namorado (Pedro), e imagina seu encontro com Madame Clessi, uma cafetina assassinada pelo namorado de dezessete anos décadas antes, em 1905.