Relatos quase esquecidos da negritude do Amazonas

Relatos quase esquecidos da negritude do Amazonas

Trabalho de mestrado conta histórias de como viviam os negros há mais de 170 anos

Os fatos registrados em jornais, revistas e autos judiciais revelam a contribuição dos costumes à formação de Manaus

No Dia Nacional da Consciência Negra, o ÚNICO publica alguns relatos sobre como viviam os negros no Amazonas, resgatando um trabalho de conclusão de curso do mestre Ygor Olinto Cavalcante, da Universidade Federal do Amazonas, que no último dia 15 semana lançou seu novo livro “Abolição à sombra do cativeiro”.
Em seu texto, o professor lembra que Manaus registrava muitos costumes sobre os europeus e indígenas que viviam na cidade há mais de 170 anos.
Embora houvesse poucos registros, os costumes dos negros – livres ou escravos – contribuíram para a definição da identidade física e cultura de Manaus. Veja algumas dessas histórias que revelam tragédias, um pouco de humor e muito de preconceito naqueles idos de 1850 em diante:

As fugitivas

“Em março de 1864, o senhor Manoel Thomaz Pinto solicitava aos inspetores de quarteirão “a captura de sua preta escrava de nome Izabel”. A escrava havia fugido e “vagava pelos subúrbios da cidade”. E não era a primeira vez que o coronel Manoel Pinto pedia ajuda à polícia. Meses antes, Izabel havia sido presa “a requisição do senhor” por estar fugida, contou o professor.
“A escrava de nome Ana praticava entre um serviço e outro as suas “desordens” até que foi presa. Pouco tempo depois foi a vez de Maria Salomé ser presa por “andar fugida”. Outro senhor que tinha muitos problemas com sua escravaria era Joaquim Pinto das Neves, um escravocrata que se viu afrontado por Benedita. Ela fugiu tentando escapar da sentença de cem açoites por insultos cometidos. Meses depois foi capturada e açoitada”, diz o relato.

Negros de ganho e de bons costumes

O estudo aponta que por volta de 1950 havia em Manaus população “branca, pretos, pardos, mulatos, cafuzos, retintos, homens e mulheres negros nascidos no país, e também africanos, entre escravos e livres”. Entre esses, havia os negros “aguadeiros” que carregavam água das fontes e igarapés para vender aos cidadãos. Eles eram chamados “negros de ganho” que alugavam seus serviços.
Havia também os negros “de bons constumes” que eram vendedores, quitandeiras, engomadeiras, costureiras, sapateiros, ferreiros, carpinteiros, entre outros.

Construindo a cidade

O presidente da província do Amazonas era Manoel Clementino da Cunha. Ele considerava que os negros “não eram operários da melhor qualidade” mas contratou muitos deles para construir o que Manaus conhece hoje. Já existia a grande Escola dos Educandos Artífices, que deu nome ao bairro de Educandos, e eles atuavam na limpeza do prédio. Também ajudaram na obras da Igreja Matriz a na construção do Cemitério São José, onde hoje é a sede do Atlético Rio Negro Clube e a Praça da Saudade, em frente. Também carregaram pedras para a construção de prédios públicos, a reforma da enfermaria militar e o Palácio da Presidência.

Bebedeiras

Depois de tanto trabalhar, os negros livres saiam para se divertir. E protagonizavam bebedeiras e “desordens” ali na beira do Igarapé de Educandos. “Eles costumavam sair do bairro Costa da África, onde moravam, atravessavam toda a cidade, passando quase que obrigatoriamente pela rua Brasileira (atual 7 de setembro), para ficar as noites nos riachos dos Educandos Artífices, onde moravam outros parceiros, e ali causavam às vezes “desordens com bebedeiras e rixas”, conta o professor Olinto.
A bebedeira era punida com prisão imediata. Os relatos contam: “Embriagados” e para “Averiguações policiais” foram presos incontáveis vezes os africanos Onorato Angola, Estevão Angola, Leonardo Angola, Roberto Benguela, Constantino Angola, Antônio Pedro, Manoel Benguela, Mathias Calabar, Vicente Congo, Braz Congo. O africano Domingos Mina foi preso por solicitação do administrador das obras públicas. Francisco Mina foi preso por embriaguês. (..) e “Por estarem embriagados e saírem assoviando pela cidade foram presos os africanos Simão Pinto e Militão”. Nem assoviar era permitido.

Escravos fotografados por volta dos anos 1700

O doidinho da cidade

“Vez por outra, o preto Avertano da Silva Dantas fugia à regra, banhava-se pelado nos igarapés da cidade e acabava preso no calabouço por “desrespeitar” o Código de Posturas Municipais”, conta o documento.

Bairro mal afamado

Por volta de 1871 havia um jornal chamado Catechista que vez ou outra falava sobre os negros livres. Em uma nota indicou à polícia que os cortiços onde os negros moravam deveria ser vistoriados, porque eles eram sempre supeitos. Nessa época, eles moravam na Travessa da Matriz e na Travessa de Tamaracá em “cambembes”, que era o nome dos quartos alugados e que fazia referência “a uma localidade do interior de Angola às margens do rio Cuanza e Pundo Andongo, antiga capital do Reino do Ndongo”.
O mesmo jornal, certa feita publicou ameaças a um cidadão – não se sabe porque – com algumas chibatadas “de couro cru” e de enviá-lo para passear “na Costa d’África”, o bairro onde os negros moravam, revelando todo seu preconceito contra os moradores da localidade.

Acesso

O trabalho do professor Ygor Olinto pode ser acessado no site
https://www.geledes.org.br/nos-rastros-de-uma-manaus-negra-e-africana/
*Ygor Olinto Rocha Cavalcante é Vencedor do I Prêmio de Monografia e Dissertação do Concurso Nacional de Pesquisa sobre Cultura Afro-Brasileira, Comunidades Tradicionais e Cultura Afro-Latina (Fundação Palmares/MEC – 2010). É autor de “’Fugido, ainda que sem motivo’: escravidão, liberdade e fugas escravas no Amazonas Imperial. In: SAMPAIO, Patrícia. O fim do silêncio: presença negra na Amazônia. Belém: Editora Açaí; CNPQ, 2011. É autor de “Histórias de Joaquinas: mulheres, escravidão e liberdade (Brasil, Amazonas: séc. XIX)”, em Revista de Estudos Afro-Asiáticos, n. 46, Salvador, 2012. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Culturas de Migração e Trabalho na Amazônia (GPMTAM/PPGH/UFAM).


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