Diz a lenda que nos tempos em que o D. Arcângelo comandava com zelo e desvelo a Prelazia de Parintins, descobriu casualmente em conversas com seus confrades que, nove meses após as festas dedicadas aos Santos e Santas padroeiros das comunidades, uma enorme leva de crianças nasciam sem pai. Assim, nasceu a preocupação do pároco-mor com a desestruturação familiar das mulheres sem maridos. E atribuiu o fato ao Mito Regional das Amazonas, as mulheres guerreiras, também sem maridos.
O Dr. Romualdo, que dirigia naquela época o Hospital Jofre Cohen confirmou as especulações estatísticas do Sr. Bisbo. Contudo, a constatação não foi bem vinda pelos religiosos, pois as mulheres afirmavam em confissão que eram filhos do boto. O Bisbo dizia que isso era coisa do “povinho credulão” (Clarões de Fé no Médio Amazonas, pag 26) e não aceitava, de jeito nenhum, a voz do povão.
Mesmo assim confabulou com os demais confrades que criassem em suas paróquias uma brigada religiosa formada por “Marianos” pescadores, (bem entendidos de botos) e comandada por catequistas (de sua maior confiança), que armados de terços, zagaias e arpoeiras caçariam os botos namoradores, numa clara tentativa de desacreditar a crendice popular.
Durante a festa do Sagrado Coração de Jesus daquele ano na cidade de Parintins, a patrulha anti-botos estava a postos circulando entre os devotos desde a procissão até o arraial. Por volta da meia-noite identificaram um jovem de tez branco-avermelhada vestindo camisa branca e calca vincada, muito perfumado, com um chapéu de murumuru sobre a cabeça que não tirava em nenhum momento, e que todo faceiro, galanteava as caboclas presentes no arraial.
A macharada instigada pelo ciúme e ordem dos padres, ao verem as mulheres caindo nos encantos do forasteiro, armaram-se de cacetes e arpões e foram se postar na escadaria ao lado esquerdo da casa do Chico Ianuzzi, pois, se o rapaz fosse boto esse seria o único caminho para voltar às águas do rio Amazonas.
Antes do alvorecer o rapaz veio no rumo da escadaria, trazendo consigo em moça que parecia encantada ou muito embriagada. Quando começaram a descer a escadaria os Marianos cercaram o rapaz e perguntaram pelo nome do seu pai. O mesmo ficou calado. Os milicianos foram fechando o cerco no intuito de agarrar o jovem. Este percebendo a intenção do grupo, agachou-se e quando se levantou, suas roupas se rasgaram e o forte pitiú invadiu o local. Todos sentiram-se enjoados e vomitaram. O estranho largou a moça e desceu a escadaria aos pulos no rumo para a água. Um dos homens que estava se recompondo das náuseas pegou seu arpão e num tiro certeiro fincou-o meio de suas costas, que soltou um ronco surdo de dor, mas que, mesmo arpoado conseguiu se jogar nas águas e rompeu a linha do arpão que suportava a tensão de grandes pirarucus.
Os homens subiram as escadas e se dirigiram a casa do Sr. Bisbo, que fica a poucos metros na rua da frente, para contar-lhe o ocorrido. O homem que perdeu a arpoeira pediu apenas que lhe fosse reposta outra, pois não dispunha de dinheiro para comprar uma nova. O pároco pegando-o pelo braço disse-lhe candidamente que Nossa Senhora do Carmo lhe daria uma nova. (E assim o fez, naturalmente, com a verba arrecadada nos leilões em honra a padroeira de Parintins).
Passado três dias, pelas bandas da Vila Amazônia, a jusante dois quilômetros da cidade de Parintins, boiou o corpo morto de um grande boto vermelho, (que foi efeminado por Jacques Custeau como boto-cor-de-rosa) com um arpão gravado no dorso.
A partir desse dia o Bispo D. Arcângelo Cerqua, deixou de falar em suas homilias e conversas particulares que os caboclos ribeirinhos eram um “povinho credulão”.
Nos idos dos anos 70, durante meu internato no Seminário João XXIII, ouvi esta história da boca do próprio Senhor Bispo, junto com os Pes. Dinelly e Dilson (a quem presto hoje esta humilde homenagem em suas memórias).