As marcas d’água
Nos troncos das mugumbeiras
Marcam as crescentes enchentes,
Desoladoras, nos braços dos rios,
Fora do controle das gentes
Aumentando ano-a-ano,
Infeliz, infelizmente.
As plantas murchas no terreiro
Atestam o excesso das águas,
Alagam o destino do ribeirinho;
Quem menos polui o planeta
Por falta de meios e recursos,
Mas sofre os duros castigos
Da gana dos desumanos.
Miro os troncos mirrados
Expostos a fúria da enchente;
Enchem nossos olhos miúdos
De nascente desespero
Ao ver as árvores frutíferas
Carcomidas pelo excessivo
Doce líquido que dá a vida.
O modo de vida moderno,
Com consumada mesquinhez,
Trás a marca do hodierno:
Onde a mais-valia do lixo,
Filho da sociedade do consumo
Causa o desequilíbrio ambiental
Da maternal mãe natureza.
Até a grande e frondosa apuizeira
Emerge das águas baqueada.
Sua copiosa copa de folhas
Outrora verdosas de clorofila
Míngua agora após o estio,
Pintada de amarelo fuligem
Pelo demorado banho de rio.
Os bulbos das bananeiras
Desenraizadas das leiras
Boiam nas vagas como isopor,
Lavadas descem o rio, sem cor,
Sem serventia e o destino
É a gravidade das águas
Correntes em procissão.
As mungubeiras explodem
Suas painas na força da vazante.
Linguagem nata da mãe das águas
Para dispersar ao ermo dos ventos
Até aos mais longíquos estirões
As sementes miúdas, matrizes
Das gigantes das várzeas.
A campinarana ressecada
Vivifica a natureza morta,
Afogada pelo líquido da vida,
Quando deitado demoradamente
Sobre o mato-pasto aluvional
Tudo mata ao banhar a várzea
Com o demorado castigo fluvial.
As águas subiam e desciam,
Anos após anos no mesmo passo
Irrigando o curto cio da plantação
Crepitando o fogão do caboclo;
Mas a nova antrópica pressão
Aluiu o caudal das planícies
E degelo das montanhas de gelo.
As matas alagadas dos igapós
Vicejam a vida. Agradecem
E festejam a alagação
Dos campos aquáticos.
A estação abrolha mais flores,
Mas caboclo matuta ressentido
Os efeitos da grande alagação.
As terras baixas alagadas
Abundam o verde da fartura,
Passarinhos tem mais alimentos,
O vento espalha mais sementes,
Misturando diversidade de cores
Enchendo de alegria as várzeas,
Colorindo o jardim das orquídeas.
O ribeirinho alegra seu coração
Enfim, com o fim da estação.
A água voltando a fluir,
Esperança volta do novo,
Da água subindo, alagando,
Renovando os varjados,
Fertilizando tudo que toca.
O caboclo clama à natureza:
Quando a cheia é grande
E a vazante gigante
Tudo se perde no tempo.
Os bens, as crias padecem
Pelos excesso desmedidos
Dos rios apaixonados.
As voçorocas testificam
Silenciosas nas ribanceiras
O ciclo das Enchentes e Vazantes
Quando as águas ávidas chegam
E se vão sem despedidas
Deixando atrás de si o rastro
De um furacão ensandecido.
Caminham ao sabor das águas
Os bancos de areia atemporais,
Andarilhos entremeio aos leitos,
Carregando em baixo de si
O mito indígena sincretizado
Da toca da cobra-grande
Na teia cultural do caboclo.
João Melo Farias
Ixé Tupinambarana